O quebra-pote
LEMBRANÇAS DE UM QUEBRA-POTE OU O HERÓI AO AVESSO[1]
Anderson d’ Almeida
A tradicional foto do aluno segurando a caneta atrás de um birô, com a
Bandeira do Brasil ao fundo é a única imagem em papel guardada da época em que
fui aluno do antigo Grupo Escolar Eduardo Silveira. Lá, estudei da pré-escola à
quarta série do antigo Primeiro Grau (atual Ensino Fundamental).
O antigo Grupo Escolar ficava na Avenida Dr. Luís Magalhães, onde hoje
funciona o Centro de Especialidades do Hospital Regional de Itabaiana. Sua
criação data do ano de 1970, no governo de Lourival Baptista, por meio do
Decreto-Lei 329, de 11 de março daquele ano. No mesmo documento, foram
oficializadas mais 21 unidades de ensino primário em todo o estado.
A clientela do Eduardo era basicamente formada por moradores do
Conjunto General João Pereira (Conjunto Velho), do Marianga, Bairro da Torre
(Miguel Teles de Mendonça), Rua da Brasília, Rua do Fato (Itaporanga), Batula,
Eucaliptos, e dos que habitavam as margens da BR-235. Suas antigas instalações
trazem à lembrança inúmeros momentos de minha infância. Como esquecer o
macarrão com sardinha preparado com todo carinho pelas merendeiras dona Lourdes
e dona Josefa? Como não lembrar as aulas de Educação Física das professoras
Georgina e Cida? Esta chamava a todos de “meu lindo”, fazendo-nos acreditar que
realmente o éramos. É impossível apagar da memória a chegada das elegantes
diretoras: Floresta, Dona Rocha e Dona Magnólia, que só pelo visual já impunham
respeito.
Foi o Eduardo das primeiras paixões, das primeiras brigas (Marianga
versus Bairro da Torre; Conjunto Velho versus Rua do Fato etc), dos primeiros
presentes que recebi como recompensa pelas boas notas. O “Grupo” dos geniais
desenhos de Plínio e de Eugênio, filho de ‘Seu’ Celestino, do inconfundível
Opala vermelho, conhecido por todos do Marianga.
O Eduardo das saudáveis disputas com o meu rival, José de Chico Viúvo,
hoje meu compadre. Era o lugar das festas juninas, das lindas meninas, da
infância encantada e das réguas quebradas. Aliás, não eram só as réguas que
eram quebradas, os potes também.
O herói fracassado...
Lembro-me, como se fosse hoje, do pote cheio de doces amarrado em
algum lugar do pátio central da escola; e a meninada desvairada acompanhando os
passos daquele que estava perseguindo o gorducho mais lindo que já vi na face
da Terra. Eu, afoito que era, mesmo sendo um dos menores, acompanhei a turba
que tentava, aos gritos, direcionar o gladiador que faria a nossa felicidade.
Como se estivesse sendo puxado por um imã ou levado por uma cauda de cometa,
segui a multidão em polvorosa. Mesmo tendo escutado alguns conselhos, eu fui.
Ninguém, naquele momento, teria forças para me segurar... fui arrastado pelo
encanto do pote mágico. Foram algumas tentativas frustradas que me deixaram
apavorado. A cada “ratada” do caceteiro, meu coração acelerava mais. Eu queria
pegar todas as balas, pirulitos e pipocas... o maior número possível. Eu queria
impressionar a menina mais bonita da sala. Queria ganhar o respeito dos
grandões.
Tracei uma estratégia, aproveitei-me da baixa estatura e fui furando o
paredão humano pouco a pouco até que, no momento mais aguardado, estava na
primeira fileira, aos gritos, tentando orientar o quebrador. Não sei se o tal
me ouvia, o barulho era ensurdecedor. Só me lembro do momento mais encantado
daquela tarde. Com uma força que lembrava as marteladas de Thor, finalmente o
cabra-cega conseguiu acertar o pote. Foi uma tacada certeira na linha da
cintura. Quando vi o pote se despedaçando no ar e o ouro caindo aos quilos em
câmera lenta, mergulhei com as duas mãos abertas, fechando-as em seguida para
que ninguém ousasse roubar meu tesouro. Ainda me lembro de alguns corpos caindo
sobre mim e da dificuldade de respirar...
A partir daí, não recordo mais nada. Só me vejo, alguns minutos
depois, já sem o par de tênis tipo conga e sem meias, deitado no sofá da
secretaria, cercado de professoras e da diretora: Dona Rocha. Elas, num
corre-corre danado, fazendo-me inalar um perfume tipo alfazema; vi uma garrafa
de álcool em cima do birô e alguém me abanando com uma toalha...
Ao dar cor de mim, perguntei:
— O que aconteceu? Onde estão minhas balas, meus pirulitos? Onde
estou?
Daí veio a resposta da professora Cida:
— Você desmaiou, seu pestinha, seu lindo!
Praticamente todo o Eduardo Silveira havia parado, ansioso por saber
como estava o moleque desobediente que queria pegar todas as balas do pote.
Pelo menos, naquela tarde, fui o centro das atenções de todo o Grupo Escolar.
Como não consegui ficar com nenhuma bala, ao sair da sala da diretoria, fui
presenteado por todos os professores, colegas e funcionários.
Uma imagem sempre me vem à lembrança: a saída diretoria, conduzido
como um herói. Ao chegar à sala de aula, fui aplaudido e abraçado por todos.
Durante muitos anos, não entendi muito bem a reação de meus colegas.
Eu tinha sido desobediente, enxerido, afoito, ganancioso... Até que, já adulto,
cruzei com uma frase de Martin Luther King que me causa impacto até hoje: “O
homem que não está disposto a morrer por uma causa não é digno de viver!”
Eu morreria pelas vísceras daquele pote...
[1] Publicado originalmente no livro Itabaiana
de minha infância. (Coleção Academia Itabaianense de Letras). Aracaju:
Infographics, 2017, p. 134-137.
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